PAULO LUIZ FIGUEIRÊDO DE OLIVEIRA[1]

A imprensa divulgou recentemente que o governo do Distrito Federal encaminhou à Câmara Legislativa, para que fosse votado em regime de urgência, um projeto de lei (PL 652/2011) concedendo isenção do IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – aos veículos novos, ou seja, no primeiro ano da aquisição. Segundo a justificativa apresentada, a finalidade seria estimular a venda de carros novos no Distrito Federal, impedindo, assim, que os consumidores migrem para o Estado de Goiás, além de, indiretamente, aumentar também a arrecadação do ICMS. Para compensar a perda de receita decorrente de tal isenção, nos três anos subseqüentes  haverá um acréscimo de 0,5 % (meio ponto percentual) na alíquota do tributo incidente sobre os veículos classificados como automóveis, caminhonetes, utilitários e outros congêneres, que passaria de 3,0 para 3,5%.

Preliminarmente, deve ser mencionado que o governo não informou qual a estimativa de perda de arrecadação com a medida proposta, mas que é possível estimá-la, supondo que ela permaneça restrita apenas aos veículos que o governo pretende contemplar- isto é, que não seja estendida a outros contribuintes, por força de decisão judicial – em R$ 80,0 milhões, tendo como parâmetro os dados sobre vendas de veículos novos nos últimos anos. A propósito, deve ser dito que a ausência da aludida estimativa representa a primeira ilegalidade revelada pela análise da proposta, pois a Lei de Responsabilidade Fiscal exige que a concessão de qualquer benefício fiscal seja acompanhada dessa informação para o exercício em que for autorizado, assim como para os dois imediatamente subseqüentes.

Superada essa questão, há de se lembrar que o projeto de lei em questão é flagrantemente inconstitucional, pois o art.152 da Constituição Federal dispõe expressamente que “é vedado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino”. O art. 2º, inciso I, do projeto de lei, no entanto, condiciona a isenção do IPVA no primeiro ano de aquisição do veículo, e que esta tenha ocorrido no Distrito Federal. Registre-se, ainda, que o inciso II do § 6º do artigo 155 autoriza a aplicação de alíquotas diferenciadas apenas em razão do tipo e da utilização do veículo, mas não em função do local de sua aquisição.

Para arrematar essa discussão, convém fazer referência também ao inciso II do art. 150 da Constituição, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”. Tendo em vista que o fato gerador do IPVA é a propriedade de veículo automotor, independentemente do local de aquisição, não é possível conceder isenção desse tributo a um grupo de contribuintes e deixar de fazê-lo em relação a outro, posto que ambas as categorias de contribuintes encontram-se na mesma situação, isto é, adquiriram veículos novos.

Deixando de lado os aspectos meramente constitucionais, é necessário ressaltar que, mesmo se o argumento do governo estivesse correto e fosse possível lograr um aumento na arrecadação do IPVA por meio da medida proposta, essa alternativa jamais deveria ser utilizada, pois implica em imensas externalidades negativas. Em outras palavras, os custos sociais e econômicos dela decorrentes, materializados sob a forma do aumento no número de pessoas mortas e mutiladas no trânsito; no aumento da poluição ambiental e sonora; na ampliação dos gastos públicos para intervenção na infraestrutura urbanística, inclusive com a construção de novas pontes e viadutos, duplicação de pistas etc; todas sobrecarregando os gastos públicos em valores muito superiores aos eventuais ganhos de arrecadação, evidenciam claramente que a opção pela medida em comento seria um grave equívoco.

Se o propósito do governo do Distrito Federal fosse realmente ampliar a arrecadação, deveria buscar outras alternativas mais adequadas,  entre as quais a mais importante é o imediato fortalecimento do fisco local, com a urgente e inadiável realização do concurso público para o cargo de auditor tributário. Isso é absolutamente fundamental e inadiável, pois atualmente mais de 300 cargos de auditor tributário estão vagos. Qualquer tentativa de resolver esse problema por meio de artifícios tenderá ao fracasso e trará graves prejuízos para a sociedade do Distrito Federal.

Com efeito, conforme já mencionado em trabalho anterior[2] sobre essa mesma questão, a busca pelo aumento da arrecadação deve ser inserida num contexto de políticas de fortalecimento do Estado, por meio de medidas que ofereçam os recursos humanos, físicos, financeiros e tecnológicos necessários à Administração Tributária para que ela possa cumprir plenamente a sua missão institucional de combater a inadimplência, a sonegação e todas as outras formas, dolosas ou não, de evasão de receita tributária.

Não custa lembrar que pela gritante carência de auditores tributários, únicos servidores técnica e legalmente qualificados para exercer em sua plenitude a fiscalização tributária sobre o universo de contribuintes em atividade, independentemente do porte e da categoria econômica, o Distrito Federal deixou de arrecadar no ano passado, apenas com o ISS, um montante equivalente a pelo menos um bilhão de reais. Esse valor foi estimado tomando como referência a taxa média anual de crescimento com a arrecadação desse tributo no período de 2002 a 2010, nos municípios das capitais, que foi de 23,95% enquanto a do Distrito Federal ficou limitada a 13,45%.

Se o Distrito Federal tivesse seguido a tendência das capitais brasileiras, deveria ter arrecadado no ano passado cerca de R$ 1.874,5 milhões e não apenas os R$ 913,6 milhões efetivamente obtidos. É bom destacar que a população do Distrito Federal ostenta a maior renda per capita do País e, com certeza, induz a uma movimentação e crescimento do setor de serviços em ritmo muito mais acelerado do que o restante do País. Portanto, se esse setor estivesse sendo devidamente acompanhado e a sonegação fiscal e outras formas de evasão de receita reprimidas, o Distrito Federal poderia ter um ganho de arrecadação muito superior à média do País. Por falta de auditores tributários, nomeados por concurso público, entretanto, isso não está ocorrendo.

No caso do ICMS, a situação é semelhante e, mesmo tomando como referência o valor da arrecadação em 2006, que já era extremamente achatado, uma vez que o processo de desmonte do Fisco local já estava em curso há vários anos, o Distrito Federal deixou de arrecadar, em 2010, pelo menos, R$ 615,0 milhões. Isso porque, enquanto as demais unidades da Federação, no período de 2006 a 2010, exibiram uma taxa de crescimento médio anual de 11,99%, no Distrito Federal esse mesmo indicador não passou de 8,52%.

Vale lembrar que o ICMS e o ISS não são os únicos tributos nos quais o Distrito Federal vem deixando de arrecadar anualmente centenas de milhões de reais. Isso vem ocorrendo também e de forma crescente no caso do IPTU, uma vez que a base de cálculo desse tributo atualmente está extremamente defasada e, em muitos casos, o valor do imóvel, considerado para fins de incidência do imposto, não chega a representar 50% de seu real valor de mercado. Vale dizer que isso tem graves implicações sociais, pois enquanto proprietários de imóveis luxuosos e extremamente valorizados, localizados em bairros nobres como o Sudoeste, Park Way, Asas Sul e Norte, Taguatinga, Lagos Sul e Norte; Jardim Botânico, Setor de Mansões Dom Bosco etc., pagam um IPTU sensivelmente inferior ao devido, muitas famílias de menor nível de renda deixam de receber o necessário e digno atendimento em hospitais da rede pública não apenas por falta de profissionais suficientes, mas também pela falta de equipamentos e insumos essenciais, conforme noticiado pela imprensa recorrentemente.

Destaque-se, ainda, que o Distrito Federal é uma das pouquíssimas localidades em que não é adotado o critério da progressividade nas alíquotas do IPTU, o que torna a sua administração mais ineficiente, seja quanto ao critério do seu potencial como fonte de recursos para o financiamento de políticas públicas, seja enquanto instrumento de promoção de justiça fiscal. Esse ponto deve ser destacado, pois assim como a defasagem na base de cálculo do imposto, a não aplicação de alíquotas progressivas para o IPTU ocorre única e exclusivamente por motivação política e pelo receio do desgaste que essa medida, embora desejável do ponto de vista econômico e social, causaria. Com isso, o Distrito Federal deixará de arrecadar com esse tributo pelo menos R$ 300,0 milhões.

De tudo o que foi exposto, a conclusão que fica é a de que o objetivo real do governo com a proposta de isenção do IPVA na aquisição de carros novos não tem qualquer relação com o desejo de aumentar a arrecadação tributária. Essa medida busca satisfazer apenas o interesse dos donos de concessionárias e revendas de veículos, que, em muitos casos, já oferecem esse benefício. Ou seja, é a velha tradição dos setores dominantes da sociedade brasileira de privatizar os lucros e socializar custos e prejuízos. Aliás, se o governo tivesse mesmo interesse em aumentar a arrecadação teria priorizado a realização do concurso público para auditor tributário, que vem se arrastando desde 2010 e até hoje não foi realizado por puro e absoluto desinteresse do governo, que preferiu rasgar a Constituição Federal e mover céus e terra para aprovar um projeto de lei claramente inconstitucional. Com isso, pretende transformar em auditor um grupo de servidores, ocupantes dos cargos de fiscal tributário e de agente fiscal, colocando, assim, de forma absolutamente inaceitável, os interesses particulares desses servidores acima do interesse público.


[1] PAULO LUIZ FIGUEIRÊDO DE OLIVEIRA É ECONOMISTA E MESTRE EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA, CONSELHEIRO DO CONSELHO REGIONAL DE ECONOMIA DO DISTRITO FEDERAL E AUDITOR TRIBUTÁRIO DA SECRETARIA DE FAZENDA DO DISTRITO FEDERAL, ESTANDO ATUALMENTE CEDIDO PARA A CÂMARA DOS DEPUTADOS, ONDE EXERCE A FUNÇÃO DE ASSESSOR PARLAMENTAR.

[2] ISENÇÃO DO IPVA PARA CARROS NOVOS: UMA PROPOSTA EQUIVOCADA – Disponível em www-sindifiscodf.org.br.