Brasília, 18 de setembro – O imperativo de uma reforma fiscal constitui unanimidade entre nós. É, portanto, paradoxal que mudanças nessa área apresentem tanta dificuldade para avançar. No caso do sistema tributário – apenas uma dimensão da questão fiscal -, todas as tentativas de reforma até agora foram frustradas, principalmente pela impossibilidade de reunir o necessário consenso dos entes da Federação em torno de uma agenda mínima.

Em sua essência, nosso sistema atual continua sendo o sistema de 1967 – desvirtuado e, pior, com uma carga tributária bem mais alta. Encontra-se evidentemente superado pelo tempo, dada a magnitude das mudanças ocorridas na economia brasileira desde então.

A insistência na utilização de um sistema desenhado para uma realidade econômica, doméstica e mundial, completamente diferente, produz sérias distorções na economia. Sua inadequação aos tempos atuais vem causando estragos na nossa competitividade, especialmente graves no setor industrial.

Igualmente importante, o sistema vem se tornando crescentemente obsoleto como esteio do pacto federativo, o grande acordo que mantém a convivência harmônica entre União, Estados e municípios. Em muitas instâncias, talvez em função da dificuldade para enfrentar de forma definitiva os problemas, soluções provisórias foram adotadas, como nos casos dos critérios de rateio dos fundos de participação e dos incentivos e benefícios de ICMS concedidos pelos Estados. Em ambos os casos, a Constituição prevê a regulamentação da matéria por meio de novas leis complementares.

No primeiro, a regra provisória de rateio, de 1989, foi declarada inconstitucional pelo STF. No segundo, a nova lei complementar do ICMS simplesmente omitiu o tema, mantendo assim a solução provisória de utilização da Lei Complementar 24, de 1975, ou seja, de obrigatoriedade da aprovação de qualquer benefício estadual de ICMS, por unanimidade, no Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).

Especialmente no caso dos incentivos estaduais, de longe a mais complexa das questões federativas, a falta de uma solução definitiva vem provocando um quadro de insegurança jurídica muito preocupante, pois causa adiamentos e/ou cancelamentos de investimentos, com sérios prejuízos para a nossa capacidade de crescer e gerar emprego e renda.

Não é sustentável o contexto atual, no qual ações abarrotam a Justiça, em grande maioria arguindo a constitucionalidade dos créditos de ICMS gerados no comércio interestadual a partir de operações que auferiram benefícios/incentivos nos Estados de origem, sem que os mesmos tivessem sido aprovados pelo Confaz. O tema, inclusive, encontra-se sob a ameaça de edição de súmula vinculante pelo Supremo.

Torna-se urgente retirar o foco do debate do Judiciário, trazendo-o novamente para o campo político. Somente um grande acordo político pode pacificar o atual ambiente de conflito. A busca de uma solução para o problema requer uma reflexão sobre as causas que lhe deram origem.

A questão apresenta, sem dúvida, múltiplos aspectos. Um dos mais relevantes relaciona-se à política de promoção do equilíbrio regional. Efetivamente, a redução das disparidades regionais consta como objetivo estratégico de todos os planos nacionais de desenvolvimento. Ocorre que com o passar do tempo, por uma série de razões, a União foi paulatinamente abandonando suas responsabilidades no campo do desenvolvimento regional.

A tendência acentuou-se principalmente a partir da crise fiscal e da promulgação da nova Constituição, em 1988, que impactaram negativamente as contas federais, e da abertura ao exterior promovida em 1991. Como consequência, a União desinteressou-se dos impostos compartilhados, notadamente o IR e o IPI, que constituem a base de recursos dos fundos de participação. Essa base caiu, entre 1988 e 2010, de 78% para 48% do total de recursos arrecadados pela União, reforçando o processo de enfraquecimento dos Estados, principalmente dos menos desenvolvidos, os mais dependentes da receita proveniente dos fundos de participação.

Estados fracos enfraquecem a Federação. De fato, os Estados detêm hoje (2010) cerca de 25,3% da receita total do bolo tributário, contra 38,3% em 1965 e 30,0% em 1988. Enquanto isso, tanto a União quanto os municípios experimentaram aumentos expressivos, principalmente os últimos, que, de cerca de 8,9% em 1965, alcançaram em 2010 nada menos que 18,5% do bolo tributário. O mais grave é que tais mudanças na repartição do bolo de recursos não tiveram a contrapartida correspondente na divisão de encargos entre as três esferas.

Está claro que passou da hora para se editar uma nova lei complementar, que modernize a regulamentação da concessão de incentivos de ICMS, como prevê a Constituição Federal. É preciso encontrar uma solução que preserve o instrumento da harmonização, mas, ao mesmo tempo, devolva aos Estados, dentro de limites bem definidos, algum grau de autonomia.

Essa seria uma iniciativa importante no contexto de uma política de desenvolvimento regional, instrumento fundamental em um país como o nosso, que, a despeito do progresso alcançado em muitas áreas, apresenta ainda enormes e persistentes disparidades regionais.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda
Fonte: Valor Econômico